terça-feira, 23 de abril de 2013

NÃO VOLTES, JOÃO! NÃO VOLTES!







Na sessão do dia 18 de Abril lemos várias passagens do livro de Bernardo Santareno "NOS MARES DO FIM DO MUNDO".
Aqui fica um desses textos, bem expressivo do estilo do autor:


CHAMADA DE URGÊNCIA

Foi no «Bissaia Barreto». Mensagem angustiosa do capitão, pela telefonia: Um homem de convés ferido, com uma faca de escalar. Golpe fundo, hemorragia abundante.
Imediatamente, os dois navios, o «Bissaia» e o «Melgueiro», recolheram as redes e largaram ao encontro um do outro, com a rapidez possível. Num instante, eu e o enfermeiro nos apron­támos. Quanto a mim, ansioso, mesmo aflito: Qual a gravidade autêntica do caso? Poderia resolver?...
Uma vez convenientemente aproximados os dois barcos, era ainda necessário percorrer, num pequeno bote, o mar que os separava: ondas altas, mas ainda não verdadeiramente perigosas. Neve caindo sempre, cada vez mais cerrada. Gelo disperso pelo mar, em pequenos blocos.
Lá fomos. Escuros de névoa, o céu, o mar e o ar; escura tam­bém a minha alma, de apreensão.
Mal chegado, levaram-me logo para uma minúscula enfer­maria: a minha ansiedade crescia, dolorosa. No beliche único, um homem novo estendido. Sangue nas roupas do ferido, nas cobertas da cama, até no chão. Observei o golpe: a faca passara entre as costelas, um pouco abaixo da ponta do coração. Hemo-pneumotórax? Pela auscultação, pareceu-me que sim.
Então, fixei profundamente o doente: cerca de vinte anos, pálido de anemia e de angústia, dois olhos grandes límpidos e macerados, finos os lábios convulsivamente apertados...
Tentativa de suicídio, é claro.
Na carne branco-azulínea do peito estreito, logo abaixo do coração, aquela flor de fogo tinha qualquer coisa de marca sagra­da, de mutilação ritual: marca de inadaptados, frágeis, solitários e desesperados.
Mandei esterilizar o material, para fazer a sutura da ferida: O rapaz, assustado, seguia-me com a vista... Por fim, o receio quebrou-lhe o mutismo:
Vai coser?...
Sosseguei-o: não sentiria nada. Pobre mocito! Impossível não o acarinhar: era uma criança! E as pestanas enormes lutavam para reter a paixão das suas lágrimas...
Soube que, frequentemente, sucumbia a ataques espasmódi­cos, durante os quais perdia os sentidos: epiléptico? Agora, um sentimento dominava toda a sintomatologia: um medo patológi­co, um entranhado terror, contra o mar e principalmente contra o seu navio. Um só desejo, este frenético: voltar para terra.
Dentro de meia hora, um outro barco, o «Pádua», partia para reabastecimento em St. John's:
Queres ir no «Pádua»?...
Os olhos do rapaz encheram-se-lhe de aleluias...
Suturado o ferimento, preparei-o para a viagem com coa­gulantes e analépticos. Chamava-se João. E foi para St. Johns, vi-o eu partir! Com uma delicadeza esquisita, os companheiros levaram-no em braços até ao bote, que havia de o conduzir ao outro navio: o rosto de cera, cinzentos os lábios, nos olhos febris uma ânsia obstinada, às vezes um pavor gelado...
Adeus, João! Voltarei a encontrar-te? Que será de ti?... Pronto, ei-lo chegado ao «Pádua»... Agora, içam o bote ... Ainda o vejo muito bem: na cabeça, um carapuço infantil, dos que têm borla no alto... Adeus! Boa sorte, rapazinho!
Vejam com que alma ele cravou a faca no peito!: Um moço tão jovem, tão grácil, quase belo?!... Que Nossa Senhora te acompanhe, João! E não voltes! Não voltes! Não voltes!!
O mar não gosta de ti, meu filho: Ele só quer aqueles que o dominam; e tu não podes. Não voltes para o mar: esconde-te na noite fresca que nasce da sombra das árvores, mistura a tua carne com a terra generosa e firme, deixa-te perder nos ares com o perfume da hortelã, dos cravos e das laranjeiras em flor...
Não, não queiras voltar. E vai com Deus, João!
*

Quando regressámos ao «David Melgueiro», o mar estava mais bravo, a neve fustigava-nos com mais raiva, e a noite des­cia rápida. Riscando a cinza negra deste mundo desolado, cor­tando céu e mar, um traço rubro, indelével e sangrento: uma ferida de Sol-poente, nesta paisagem vítrea...

 in: NOS MARES DO FIM DO MUNDO, B. Santareno, Edições Ática, Lisboa, 1999.

Sem comentários:

Enviar um comentário