TEXTOS DE APOIO

TEXTOS DE APOIO

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NÓS SOMOS AHAB

- Ouvi, mais uma vez - a camada inferior. Todos os objetos visíveis, homem, são mascaras de papelão. Mas em cada evento, no ato da vida - o feito indubitável —, algo desconhecido, mas racional, apresenta o contorno dos seus traços por trás da máscara irracional. Se o homem for atacar, que ataque para destruir a máscara! Como pode o prisioneiro escapar, a menos que rompa os muros da prisão? Para mim, a baleia branca é o muro que me oprime. Às vezes, penso não haver nada do outro lado. Mas já basta a baleia. Ela me desafia e me diminui; vejo nela a força absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre ela esse ódio. Não me faleis de blasfêmia, homem; eu atacaria o sol, se me insultasse. Pois, se o sol me pode insultar, posso atacá-lo, de vez que sempre há nessas coisas uma espécie de justiça, pois o ciúme governa toda a criação. Mas nem essa justiça, homem, é minha senhora. Quem está acima de mim? A verdade não tem limite.
O Capitão Ahab dirige-se à tripulação em "O Tombadilho", capítulo 36 de Moby Dick, instando-os a acompanhá-lo na busca prometeica, na caça e morte à baleia branca que o mutilara. O Ahab de Melville fala em prosa shakespeariana, metafísica, dramáti­ca, transformada pelo gênio do autor em um elemento permanente do idioma norte-americano.

"Ataque para destruir a máscara!" é a diretiva que Ahab nos oferece. Ficamos apri­sionados dentro dos muros do universo visível, natural, e Moby Dick "é o muro que [nos] oprime". Talvez não exista nada além do muro, mas Ahab não haverá de remoer tal niilismo; Moby Dick já basta: "Ela me desafia e me diminui." Ouvimos aqui a voz da espiritualidade norte-americana instintiva, afirmando-se contra uma natureza por ela repudiada. O que há de melhor e mais primordial em Ahab expressa, em um brado, o desafio norte-americano: "Eu atacaria o sol, se me insultasse!"

Quando acrescenta "Quem está acima de mim?", Ahab não está rejeitando o Deus desconhecido, mas a tirania da natureza em relação ao homem.
Equivocamo-nos quanto a Ahab, figura tão majestosa, ao alardeamos a sua violência, conforme o fazem muitos estudiosos moralistas. Ahab não é vilão, nem mesmo herói-vilão, como Macbeth. Não apenas a nossa simpatia é cativada por Ahab: nós somos Ahab. Ele nos desafia e oprime, pois é o herói norte-americano, nosso Dom Quixote trágico, em busca da justiça final diante da derradeira inimiga, a morte.

      [in: GÉNIO – Os 100 autores mais cristivos da História da Literatura; Harold Bloom, 
       Objectiva, Rio de Janeiro, 2003]




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14  março 2013

O episódio da "ilha dos amores": Canto IX, estr. 51 a 92



Columbano: Os portugueses e as ninfas na Ilha dos Amores
Gravura em madeira, Museu do Chiado

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A DIGNIFICAÇÃO ÉPICA DOS HERÓIS

1.      A «ÍNSULA DIVINA»

É na precisa altura em que os «mininos voadores» de Cupido se preparam para ferir os humanos (culpados de mal amarem) que Vénus convence o filho a orientar diferentemente o seu combate: ajudando-a a recompensar devidamente os Lusita­nos, ferindo de amor as ninfas que os aguardavam numa ilha por si preparada no Oceano, poderá fazer que uma nova gera­ção — «progénie forte e bela» — de humanos nasça — gera­ção essa que servirá de exemplo ao «mundo vil, malino» que se revolta contra Cupido.
Assim preparada por Vénus, com a ajuda de Cupido, a Ilha vai ser avistada pelos nautas (IX,52). A medida que dela se vão aproximando, ela vai-lhes surgindo em contornos mais preci­sos: árvores, fontes, frutos apetitosos, odoríferos e coloridos (laranjas louras, cidra amarela, limões que imitam «virgíneas tetas», cerejas purpúreas, a «rubicunda romã», mais valiosa que o rubi, as peras piramidais, os cachos roxos). Tudo, nesta magnífica descrição plástica de Camões, está cheio de sensua­lidade, favorecendo o apetite e os prazeres da vista, olfacto, paladar, ouvido, tacto. Não é esquecida a presença da água e do verde, bem como a dos animais, nomeadamente de caça.
Desembarcados na Ilha (estrofe 64), outras maravilhas aguar­dam os navegadores: as belas deusas, os prazeres da música; deusas nuas ou quase nuas, em cuja perseguição se lançam Veloso e os companheiros. São os jogos do amor, a alegria e a plenitude do corpo satisfeito. Dos jogos de amor, particular atenção é dada aos de Lionardo e da sua ninfa, a quem dirige palavras de sabor petrarquista, ao modo dos amores palacia­nos. A estrofe 83 resume brilhantemente a atmosfera amorosa vivida na Ilha de Vénus: são os «famintos beijos», o «mimoso choro», os «afagos tão suaves», a «ira honesta», os «risinhos alegres» que pontuam as relações amorosas entre humanos é deusas.
Camões pode concluir, não sem uma leve ponta de malícia:

          «O que mais passam na manhã e na sesta
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é esprimentá-lo que julgá-lo;
                Mas julgue-o quem não pode esprimentá-lo.»

É a festa, a orgia, o amor sensual elevado à grandeza de pré­mio espiritual máximo. Para o Gama, a ligação com Thétis (e suponho que da «confusão» de Camões, assinalada em rodapé à estrofe 85, é possível imaginar poder tratar-se da mesma que se negara ao Adamastor, porque este amava mal). Gama mere­cia esta suprema consagração, ele para quem, como para os Argonautas da fábula, recordados por Fernando Pessoa e por Caetano Veloso,

«Navegar é preciso, viver não é preciso»

2.      0 SIGNIFICADO DA ILHA

É altura de Camões nos explicar o significado desta Ilha: ela é o prémio, «as deleitosas honras/que a vida fazem subli­mada». A imortalidade que os Antigos atribuíam aos heróis ira isso mesmo: a merecida recompensa de quantos haviam sabido seguir o

«Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso»

Como atingir então esta suprema honra e plenitude?
Despertando do ócio, refreando a ambição e a cobiça, recu­sando o «torpe e escuro vício da tirania», sendo justo em tempo de paz, não dando aos grandes o que é dos pequenos, sendo valente na guerra contra os Mouros, aconselhando bem o Rei: os que assim actuarem, terão direito aos «beijos mereci­dos da Verdade» (Fernando Pessoa) e serão «nesta Ilha de Vénus recebidos».
Tornados divinos pelas relações com as deusas, novas delí­cias se preparam para os navegadores. Disso se dará conta no Canto seguinte.

in: OS LUSÍADAS, ed Areal Editores, Organização do texto, introdução e notas de Amélia Pinto Pais, Porto, 1994

*


A ILHA DOS AMORES

Canto IX, estr. 18 – 92

Nota facilitadora da leitura:

- Vénus prepara um prémio para os portugueses (18-21)
- Vénus vai ter com Cupido e com ele forma a “Insula Divina” (22-50)
- A armada de V. da Gama avista a ilha (51)
- Descrição da Ilha (52-65)
- Desembarque dos portugueses (62-67)
- Perseguição e união entre as ninfas e os navegadores(68-84)
- No palácio de Tétis (85-87)
- O significado da Ilha (88-92)







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FERNÃO MENDES PINTO E A PEREGRINAÇÃO



http://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Mendes_Pinto




A PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO REVISITADA
A SUA TEORIA MODERNA DA VIAGEM

Arnaldo Saraiva*
* Professor catedrático da FLUP. Investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória».

(…)
«Mas é bom lembrar que, nesse mesmo ano, (1614) foram publicadas em Portugal, sob o
reinado de Filipe II, a Quarta Década da Ásia, de João de Barros, e, sobretudo, a
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.
Como não era raro ao tempo, a Peregrinação tinha um amplo e publicitário
subtítulo-resumo, não garantidamente da autoria de Fernão Mendes Pinto, e
susceptível de aguçar a curiosidade dos leitores ou dos clientes do editor lisboeta Pedro
Craesbeek, por sinal o flamengo Peeter Van Craesbeeck, que, meia dúzia de anos depois,
Filipe II nomearia impressor régio. Na metade superior da capa e do frontispício da
obra podia ler-se:

Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto. Em que se da conta de muytas e muyto estranhas
cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se
chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martauão,& em outros muytos reynos & senhorios
das partes Orientais, de que nestas nossas do Ocidente ha muyto pouca ou nenh~ua noticia.
E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras
muytas pessoas. E no fim dela trata brevemente de alg~uas cousas & da morte do Santo Padre
mestre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente & Reytor nellas
universal da Companhia de Iesus.

De Fernão Mendes Pinto, que nomeia duas vezes («Escrita pelo mesmo Fernão
Mendes Pinto»), é que não se diz nada, mas dirá muito a obra. E o que esta diz não contraria
a imagem que se colhe dos poucos dados biográficos seguros que dele se conhecem, a
acreditarmos nalguns que ele próprio veiculou na mesma obra e nas suas escassas cartas:

– que nasceu por volta de 1510 no seio de uma família pobre de Montemor-o-Velho,
a poucos quilómetros de Coimbra, no seu tempo e durante séculos sede da
principal universidade portuguesa;
– que por um tio foi levado em 1521 para casa de uma nobre senhora de Lisboa,
onde, cerca de um ano e meio depois, teve um «caso» misterioso, de que só diz que
lhe «pôs a vida em tanto risco», que teve logo de fugir de casa;
– que depois da fuga precipitada foi de barco em direcção a Setúbal, mas, atacado esse
barco por corsários franceses, foi pela primeira vez prisioneiro, durante 13 dias;
– que serviu noutra casa nobre de Setúbal, de onde também saiu, partindo a 11 de
Março de 1537 de Lisboa, e desembarcando na Índia (Diu) em 5 de Setembro do
mesmo ano;
– que andou por vários lugares orientais – Índia,Malaca, Samatra, Java, China,Macau,
Japão, etc. –, cumprindo diversas tarefas ou missões e passando por experiências
muito diferenciadas (da prática de soldado e de pirata à de noviço ou irmão leigo da
Companhia de Jesus, da extrema pobreza ao enriquecimento rápido) e às vezes
muito difíceis ou ousadas, tendo sido «treze vezes cativo e dezassete vendido» e
regressando em Setembro de 1558 a Lisboa, que deixara 21 anos antes;
– que, já em Portugal, casou com mulher certamente bem mais jovem (pois ela
morreu em 1623), que lhe deu filhos, e fixou-se na quinta do Pragal, em frente de
Lisboa, perto de Almada, «vila» de que chegou a ser juiz, e quinta onde terá escrito
a Peregrinação, e onde morreu com mais de 70 anos, em 8 de Julho de 1583.
Quer isto dizer que os 226 capítulos da Peregrinação foram compostos bem antes da
sua publicação, póstuma de 31 anos; nos mesmos ou noutros moldes, o autor já a
projectara no Oriente, pois, numa carta redigida em 5/12/1654, diz aos seus «irmãos» da
Companhia de Jesus que lhes dará «alguma relação» do «discurso» da sua vida e dos seus
trabalhos. Supõe-se que o autor a começou em 1569, quando andaria perto dos 60 anos,
e a terminou cerca de dez anos depois, tendo-a portanto escrito já longe dos tempos e dos
espaços nela referenciados, e numa idade favorável à narração memorialística e autobiográfica,
com as virtudes e os defeitos que tal narração como regra implica: a enunciação
próxima da oralidade (há memórias que fazem concessões ao discurso reflexivo e à
demora descritiva, mas as memórias são mais frequentemente colecções de contos), a
fluência e a flutuação narrativa, a invocação e o privilégio da experiência própria –
mesmo se, como também ocorre na Peregrinação, há recurso ao livresco – algumas falhas
ou trocas referenciais, a fixação em cenas ou pormenores exemplares, mesmo quando
anedóticos, a tendência para a reconstrução encarecedora, a passagem consciente ou
inconsciente do vivido ao fictivo.

A mistura da história e da estória (da verdade e da ficção), que geraria o tão repetido
trocadilho «Fernão mentes? Minto», a referência a terras e gentes estranhas para a maior
parte dos leitores de então, mesmo que já houvesse um importante conjunto de relatos
sobre o Oriente, mas também a verve e a ironia, às vezes brilhando no interior de cenas
dramáticas e de longas ou desdobradas frases, garantiram, mau grado o décalage entre a
produção e a publicação, o sucesso imediato e internacional da Peregrinação, mensurável
em edições, completas ou parciais, em antologias, em traduções, em comentários, que nos
nossos dias se multiplicaram, e se valem de novos suportes e de novas linguagens, sejam
as do teatro (por exemplo, de Helder Costa / A Barraca), as do documentário cinematográfico
e até da banda desenhada (José Ruy), ou as da canção, que pode ser tão popular
como a de Fausto (Por Este Rio Acima, 1982).»
(…)

in: CEM N.º 1 / Cultura,
ESPAÇO & MEMÓRIA
«CEM/cultura, espaço & memória». Porto: CITCEM, n.º 1 (2010). http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id1349&sum=sim



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7  Mar 2013

OS LUSÍADAS - EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO
CANTO III, estr. 118 -135

CRONOLOGIA
ÉPOCA DE D. PEDRO I E D. INÊS DE CASTRO


1291 - 1357
Vida de D. Afonso IV
1325
D. Afonso IV sobe ao trono (com 34 anos) (sucede a D. Dinis)
1340
Batalha do Salado (última tentativa moura para recuperar a Pen. Ibérica)
1320-1367
Vida de D. Pedro
1320(?) - 1355
Vida de D. Inês de Castro (Descendente da família real de Aragão, filha de Pedro Fernandes de Castro, mordomo-mor de Afonso XI de Castela (genro de D. Afonso IV)
1340
Infante D. Pedro casa com D. Constança Manuel (2º casam; primeiro: D. Branca)
1344
D. Inês é exilada no castelo de Albuquerque (junto à fronteira)
1345
Morte de D. Constança Manuel ( parto de D. Fernando).
1346
D. Pedro contraria o pai e faz regressar D. Inês. Começam a viver juntos e a ter filhos (Moledo, Lourinhã)
1354
D. Pedro terá casado com D. Inês (Declaração de Cantanhede, em 1360)
1355
Condenação à morte e execução de D. Inês de Castro ( Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco)
1357
Morte de D. Afonso IV. Sobe ao trono D. Pedro I (c/ 37 anos)
1361
Papa Inocêncio VI não reconhece casamento de D. Pedro. Este, nas Cortes de Elvas, confirma o BENEPLÁCITO RÉGIO: documentos pontifícios só têm validade com a aceitação do rei.
1360
Construção dos túmulos de Alcobaça. Vingança sangrenta de D. Pedro, com execução de Pero Coelho e Álvaro Gonçalves.
1362
Imponente trasladação de D. Inês de Castro de Coimbra para Alcobaça.
1367
Morte de D. Pedro I





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5 Mar 2013


ANÁLISE DO EPISÓDIO DO ADAMASTOR 
(Canto V, 37-60)


Um episódio vai marcar a parte central deste canto central-episódio que encerra em si uma súmula da luta desproporcio­nada entre os homens e o «Céu sereno»: trata-se do episódio belíssimo do Adamastor.
No meio de uma viagem que ia decorrendo calmamente — «prosperamente os ventos assoprando» — uma nuvem aparece aos marinheiros. Nuvem tremenda que «pôs nos corações um grande medo» e que levou de imediato Vasco da Gama a pedir a ajuda divina. Note-se, na estrofe 38, a musicalidade das alite­rações em — r — e das nasais, que prolongam, em sugestão onomatopaica, o ruído do mar: «Bramindo o negro mar de longe brada»
Mas, mal o Gama invoca a Providência, uma figura tremenda se lhe apresenta: pelas dimensões gigantescas, pelo «rosto car­regado», a «barba esquálida», os «olhos encovados», os cabe­los desgrenhados, «crespos» e «cheios de terra», a «boca negra», os «dentes amarelos». Tudo nesta horrenda figura infunde terror e, particularmente, a cor «terrena» e a postura «medonha e má». Também o tom de voz intimida - é «horrendo e grosso». Daí que o Gama confesse:

«Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo».

E é nesse tom de voz que parecia «sair do mar profundo» que o Gigante se dirige aos marinheiros, profetizando-lhes, como que em eco às palavras do Velho do Restelo, duros casti­gos, por terem ousado penetrar nos «vedados términos», nos mares que são pertença sua. Isto é, por, tal como Prometeu ou ícaro, terem sido atrevidos, ao tentar conquistar um elemento - a Água - que não é o elemento natural dos humanos. Os cas­tigos profetizados são terríveis:

«Naufrágios, perdições de toda a sorte
Que o menor mal de todos seja a morte»

De entre os vários naufrágios que profetiza, assume particu­lar relevo o dos Sepúlvedas, uma casal apaixonado, que, após torturas várias, ali

«Abraçados as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão»

Mas, longe de provocar o recuo dos navegadores, o Gigante vê-se interpelado, numa atitude de não medo, de afrontamento. Vasco da Gama limita-se a perguntar-lhe quem é e a dizer-se «maravilhado» pelo seu gigantesco corpo.
A partir daqui, o episódio conhece uma mudança súbita e radical; o Gigante muda de tom — a sua voz torna-se «pesada e amara» e conta, então, a sua história, que é uma história de amor infeliz. Apaixonado por Thétis, ninfa que um dia vira «sair nua na praia», que considera «das águas a Princesa», aban­dona a guerra em que estava empenhado com seus irmãos Gigantes, filhos da Terra; comparece a um encontro em que, porque «é grande dos amantes a cegueira», é enganado pela amada, por aquela, que no seu dizer era «vida deste corpo», a «branca Thétis, única, despida». Encontra-se subitamente abraçado, não à amada, mas a um rochedo.
E, mais grave ainda, está constantemente rodeado por Thétis, num suplício digno de Tântalo:

«........ e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Thétis cercando destas águas.» — estr. 59

O drama do Adamastor é, afinal, um drama de amor insatis­feito, logrado, frustrado, porque feito de terra, de atracção eró­tica de tal modo forte que o leva a abandonar a sua missão. É o drama de um «eu» enganado, recalcado, que se revela amargamente quando convidado a identificar-se, reconhecendo-se dolorosamente. Por isso, demorara ele tanto a narrar o drama de amor e morte dos dois amantes Sepúlve­das...

As suas palavras magoadas atingem o clímax emocional na estrofe 57:

«O Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?»

Repare-se, como o fez Maria Helena de Almeida Esteves em «O Sistema Alegórico d'Os Lusíadas» (Porto Editora, 1973) na sequência gradativa destes quatro substantivos: monte, nuvem, sonho, nada. Monte: algo de material e palpável; Nuvem: algo de material, mas impalpável; Sonho: o imaterial; Nada: o zero absoluto, a negação.

OUTRAS OBSERVAÇÕES

Este episódio central d'Os Lusíadas (precedem-no 36 estro­fes, seguem-se-lhe 40, neste canto central) é uma espécie de abóbada arquitectónica do Poema, em que vêm concentrar-se as grandes linhas da epopeia: o real-maravilhoso (dificuldades de passagem do Cabo) + existência de Profecias (História de Portugal) + lirismo (história de amor) — que irá ligar-se, mais tarde à narração maravilhosa da Ilha dos Amores. É também um episódio trágico, de amor e morte. Mas é, acima de tudo, um episódio épico, em que se consolida a vitória do homem sobre os elementos.
Todo este episódio se organiza também em volta de contras­tes:
«prosperamente os ventos assoprando / aspecto gigantesco do Adamastor + tom de voz «horrendo e grosso» + profecias trágicas / o Gigante que ameaça e intimida + força brutal do Gigante + violência

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«mas hüa nuvem» pequenez dos homens / voz «pesada e amara» /  história de amor / o Gigante que ama e chora / fragilidade da Ninfa, suavidade amorosa

Ainda segundo Maria Helena de Almeida Esteves,

«Aqui teríamos materializada uma das grandes forças que se opõem à grandeza do Homem, a força corrosiva, gigantesca, desordenada, da natureza material, da «carne», enfim (....) A figura do Adamastor bem se confaz a representação da miséria da carne, na preocupação final e egoísta com um íntimo problema pessoal».

 in: 
OS LUSÍADAS, Luís de Camões
Org. do texto, introd. e notas de Amélia Pinto Pais
Areal Editores, 1994


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27 Fev 2013
Do livro:

OS LUSÍADAS. Luís de Camões
Ed. organizada por António José Saraiva, Livraria Figueirinhas,
3ª ed, Lisboa, 2006

Cada estrofe tem ao lado um pequeno texto que explica o seu conteúdo:


(clicar)



(clicar)



 20 Fev 2013


A praia das lágrimas
(Canto IV,  estrofes 87-93)
As despedidas de Belém são um quadro em que a pluralidade de sentimentos familiares e humanos estão expressos, em todos os seus sonhos e temores. São os homens, as mulheres, as mães, as esposas e as irmãs com a «desesperação e frio medo / de já nos não tornar a ver tão cedo» (4,89): é uma linguagem em que a função emotiva está profundamente realizada.
Era a mãe que se despedia do filho que via caminhar para a morte, a ser de «pexes mantimento», que possivelmente já não virá a ser o esperado «emparo» de uma «cansada já velhice» (4,90). Eram as esposas que choravam os maridos, que em interrogações insistentes e angustiadas, perguntavam e se queixavam por que «nosso amor, nosso vão contentamento, / quereis que com as velas leve o vento?» (4,91).
  «A branca areia as lágrimas banhavam, / que em multidão com elas se igualavam» (4,92). As lágrimas eram tão abundantes como as areias da praia. A hipérbole e a comparação implícita, através do conhecimento sensível, apreensível pelos sentidos, das realidades «areia» e «lágrimas», aprofundam emocionalmente o conhecimento da ideia expressa. Veja-se uma síntese dos sentimentos envolvidos:

Os homens com suspiros que arrancavam;
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
(4,89)
Repare-se agora num excerto de João de Barros que certamente o poeta terá lido e que mostra serem sentimentos generalizados, aqueles que Camões expressa na sua epopeia:
«... No qual acto, foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramaram na partida das armadas, que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia des­cobrir, de onde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas pera os que vão, e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfral­dar das velas, que os mareantes, segundo o seu uso, deram aquele ale­gre princípio de caminho, dizendo — Boa Viagem! —, tôdolos que estavam postos na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus e lançar juízos segundo o que cada um sentia da partida.
Os navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela empresa embarcaram contentes, também passado o tempo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes e amigos e lembrando-lhes que sua viagem estava posta em esperança e não em tempo certo nem lugar sabido, assi os acompanharam em lágrimas como em o pensamento das cousas, que em tão novos casos se representaram na memória dos homens. Assi que uns olhando pera terra e outros pera o mar e juntamente todos ocupados em lágrimas e pensamento daquela viagem, tanto estiveram pron­tos nisto, té que os navios se alargaram do porto.» (Década, 1, Livro IV)

PARA UMA LEITURA DE «OS LUSÍADAS» DE LUÍS DE CAMÕES, Silvério Benedito, Editorial Presença, Lisboa, 1997



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A ultrapassagem da condição humana e seu castigo
no episódio do «Velho do Restelo»

CANTO IV, (estrofes 94-104) e a sugestão do Norte de África (IV,100-101)

No episódio do «Velho do Restelo», na despedida, o que está fundamentalmente em causa é a tragédia do homem, por ele querer exceder sempre os limites impostos pela natureza e pelos deuses à sua condição humana, nos pensamentos, desejos e acções.
A cobiça, o desejo da glória e da fama, o culto do esforço e valentia levam o homem a todos os extremos; seguir-se-ão os sofri­mentos das agruras individuais, no mar e em terra, ruína das famí­lias e dum povo:

Buscas o incerto e incógnito perigo,
Por que a fama te exalte e te lisonje,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
(4,101)

Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
(4,95)

Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
(4,96)

«Oh! maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
(4,102)

Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
(4,103).

Referem-se os grandes mitos clássicos ainda hoje sugestivos: o primeiro homem que lançou um barco ao mar; Prometeu que roubou o fogo aos deuses e o misturou ao coração humano (4,103); o arqui­tecto Dédalo com o filho ícaro, o primeiro a tentar andar pelo ar, fora da terra, seu elemento natural para marcha (4,104).
  Em oposição à crítica feita à desmesura da ambição humana, o «Velho do Restelo» propõe que as viagens se fiquem pelo Norte de Africa (4,100-101). Surge então quase que um enunciar das causas por que os Portugueses se lançaram nas viagens dos Descobri­mentos: se desejas combater pela religião de Cristo não tens aí Mouros numerosos com quem combater? Se desejas conquistar ter­ritórios e obter riquezas não têm eles «terras e riqueza» mais que suficientes? Se queres alcançar glória pelos feitos de guerra, não são eles valorosos no combate?
Aqui estão sintetizadas três causas dos Descobrimentos: as do Poder e dos Nobres que querem tornar-se conhecidos por vitórias militares; as do Poder e da Igreja que querem envolver-se na expan­são da fé cristã; as do Poder e seus interesses político-econômicos que desejavam conquistar territórios e riquezas.
Aprecie-se a força expressiva manifesta pelas interrogações, pela fala em discurso directo, pelo paralelismo anafórico ( repetições…)

PARA UMA LEITURA DE «OS LUSÍADAS» DE LUÍS DE CAMÕES, Silvério Benedito, Editorial Presença, Lisboa, 1997

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[ SIGNIFICADO IDEOLÓGICO DO VELHO DO RESTELO ]

«Esta vitória dos homens sobre os deuses é uma ideia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante avanço no domínio do pla­neta por parte do homem. É, aliás, também um mais vago ideal antigo, sim­bolizado pelo mito de Prometeu, o herói que roubou o lume divino para erguer os homens ao nível dos deuses. Camões realça-o, contrastando a heroici­dade revolucionária com a sensatez do Velho do Restelo, que exprime o ponto de vista oposto, segundo lugares-comuns dos coros trágicos clássi­cos: o Velho alude ao mito de ícaro, castigado pela ambição de querer elevar-se nos ares, ao mito de Prometeu, e o que é mais (e seria extremamente auda­cioso se não fosse feito por forma tão hábil), aproxima tudo isto, aproxima a própria viagem de Vasco da Gama, tema central da epopeia, da desobe­diência de Adão. A viagem do Gama, os Descobrimentos em geral apare­cem assim, num relance, como renovação do Pecado Original: o da autode­terminação humana. Este orgulho humanista, de que a seguir encontraremos outros aspectos, verifica-se sobretudo nos lineamentos gerais do poema: repare-se que o humano Gama alcança, com a posse de Tétis, símbolo do domínio dos mares, aquilo que fora negado a Adamastor, um titã semidivino.

Resumindo, Camões pouco tem que ver com a ideologia burguesa então em avanço na Europa, com o comércio transoceânico encarado como tal; Os Lusíadas exaltam uma expansão que, na sua fase decisiva, foi conduzida em moldes monárquicos a favor da classe então dominante, e não pela con­corrência capitalista privada, à maneira da Holanda. No entanto, a aristo­cracia que o Épico se propõe imortalizar tem a consciência de proceder a uma revolução no mundo, revolução de que o poeta não vê o resultado social, embora lhe atribua um significado político, religioso, científico e estético, que já basta para se orgulhar como indivíduo integrado numa comunidade nacional. Talvez possa, por isso, falar-se de uma tensão entre dois senti­mentos opostos: o da dignidade do Homem, quebrantador impenitente de todos os vedados términos, colectivamente candidato à divinização, e o da sua insignificância de bicho da terra tão pequeno. O primeiro destes senti­mentos alimenta-se da maravilha de todo um mundo geográfico recém--descoberto e de toda a funda apetência carnal camoniana; o segundo, daquela «austera, apagada e vil tristeza» em que o poeta asfixia, daquela decadência nacional cuja lúcida previsão se atribui ao Velho do Restelo, e da rígida hie­rarquia do cosmos ptolemaico, cujas esferas o Homem não conseguiria nunca atravessar sem se dividir em corpo e alma, e sem se render à divindade.»

HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, A.J.Saraiva e Óscar Lopes, Porto Editora, 16ª ed, s/d

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http://oinsurgente.blogspot.pt/2005/03/em-defesa-do-velho-do-restelo.html


Em defesa do "Velho do Restelo"

Lá vos digo que ha fadigas,

Tantas mortes, tantas brigas,

E p'rigos descompassados,

Que assi vimos destroçados.

Pelados como formigas."



A mitologia oficial dos heróis dos Descobrimentos é logo aqui posta a nu.


Também Sá de Miranda (1481-1558), exprimiu semelhantes dúvidas sobre as vantagens de manter as possessões no Oriente, na famosa Carta a "António Pereira, senhor do Basto, quando se partiu para a Côrte co a casa tôda"(Edição Sá da Costa):





Não me temo de Castela,

donde inda guerra não soa;

mas temo-me de Lisboa,

que, ao cheiro desta canela,

o Reino nos despovoa.





Sá de Miranda, humanista, homem conhecedor da Europa e do que se passava no seu tempo, sentia o Oriente como causa de decadência do Reino.


Quando Camões escreveu os seus Lusíadas, havia já uma grande contestação ao modo como D. João III tinha dado prioridade à Índia, em comparação com o abandono de algumas das possessões africanas. lembremo-nos que, em parte, as posições do Velho do Restelo seriam as posições do próprio Camões, pois este insta D. Sebastião, no início e no fim dos Lusíadas, a fazer guerra em África contra os mouros (um resquício ainda do espírito de Cruzada e dos ideais de Cavalaria), aliás também partilhados, por exemplo, por Gil Vicente, no final do Auto da Barca do Inferno (os Cavaleiros mortos em África que vão directos para a Barca da Glória).



Em conclusão, o Velho do Restelo não representa uma opinião reaccionária, contra o progresso, mas apenas, uma opinião, bastante ancorada na sociedade portuguesa quinhentista, que duvidava, por diversos motivos, das vantagens da aventura oriental, das conquistas no Índico, chegando-lhe a atribuir as causas da decadência de Portugal. No eloquente discurso (cheio de processos retóricos que remontam a Homero) do Velho do Restelo, misturam-se as ideias de um Humanismo antibelicista, abrindo excepção a este antibelicismo à guerra com os Mouros.



Por isso não chamem Velho do Restelo àqueles que se opõe ao progresso ou que são, pura e simplesmente, refractários ao progresso, pois do que se trata aqui é de uma diferente avaliação do deve-haver da aventura imperial na Índia.



Post-scriptum. Esta entrada foi sugerida pela contínua audição, em diferentes circunstâncias, da expressão "Velho do Restelo" no sentido que eu contesto aqui.



Post-scriptum 2. O que eu digo aqui nem sequer prima pela originalidade, pois os programas do 10º ano (não estou a falar do actual), já pediam aos alunos para relacionar o Episódio do Velho do Restelo com o Auto da Índia. Todavia, o problema é que a expressão cristalizou o seu sentido. Não deve haver na literatura portuguesa personagem mais difamada. Por tudo e por nada chama-se a alguém "Velho do Restelo": "és um velho do Restelo", "só os velhos do Restelo é que pensam assim", "os velhos do Restelo do costume" e por aí fora....



Ou seja, o Velho do Restelo surge como metáfora, comparação, símbolo, epíteto (eu sei lá..., escolham mais algumas figuras de estilo) daqueles que, supostamente, são "botas-de-elástico", "retrógados", "inimigos do progressos", etc..., etc..., etc...



No entanto, esta reputação é de todo imerecida e - não tendo eu feito qualquer investigação sobre o assunto e, por isso, não sabendo da origem da expressão com o sentido que ela tem actualmente -, francamente, só pode ser utilizada por quem não leu com atenção o chamado "Episódio do Velho do Restelo", Canto IV, 94-104, dos Lusíadas, ou por quem deu conta de idênticas dúvidas sobre a chamada "Empresa da Índias" como, por exemplo, Gil Vicente ou Sá de Miranda.



Qual a justificação desta minha afirmação? O próprio texto dos Lusíadas, e não entrando aqui em considerando quanto a função e aos antecedentes deste tipo de episódio na história da literatura desde a Antiguidade, em que o Velho do Restelo é apresentado como sendo alguém muito digno : "Mas um velho de aspeito venerando," (Est. 94, v. 1) e "C'um saber só de experiências feito,/Tais palavras tirou do experto peito:" (Est. 94, vv. 7-8).



A seguir, o discurso do Velho do Restelo é uma reflexão filosófica sobre a empresa das Índias e que ele condena não por qualquer alergia ao progresso, mas por a considerar apenas comandade pela cobiça e que o custo de tal operação será muito mais elevado do que as suas vantagens, devido às consequências nefastas que terá na sociedade portuguesa.



Também rejeita o fundamento de "dilatar a Fé e o Império", pois se queriam combater o Infiel (os muçulmanos) tinham o Norte de África para o fazer, onde poderiam obter a fama, glória e riquezas que buscavam no Oriente longínquo.



O Velho do Restelo mais do que representar uma facção retrógada, alérgica ao progresso, representa uma parte da sociedade portuguesa, da alta nobreza, que dava, por razões ideológicas (e religiosas), uma importância maior ao nossos domínios no Norte de África, pois era aí que os filhos da alta nobreza normalmente terçavam pela primeira vez as armas.



Por outro lado, a empresa das Índias foi muito mais uma acção conduzida pela pequena e média nobreza que, nunca podendo alcandorar-se aos altos cargos no Norte de África, viu nesta empresa um meio de poder singrar na vida.



Mas, como eu disse mais acima, com o "Velho do Restelo" Camões deu voz nos Lusíadas (e lembremo-nos que os Lusíadas foram compostos dezenas de anos depois da Viagem do Gama), a esta facção contemporânea da viagem que estava contra a sua relização. Mas, já antes de Camões, Gil Vicente e Sá de Miranda tinham expressado as suas dúvidas sobre a nossa presença no Oriente.



No caso de Gil Vicente, basta reler o "Auto da Índia", de 1509 note-se, Gil Vicente critica o impacto das expedições ao Oriente na sociedade, da infidelidade feminica provocada pela ausência dos maridos, da cobiça do portugueses na Índia, sobretudo dos capitães, e da ilusão que criava nos soldados que regressavam de mão a abanar(vv.493-497):



por Rui Oliveira @ 3/17/2005 02:26:00 PM









o O o
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7 Fev 2013

UMA INTRODUÇÃO AOS LUSÍADAS...

«Ressuscitar a epopeia homérica na época do Renascimento — quando o espírito abstractor de um mundo já muito mercantil pouco se prestava à admiração de heróis semidivinos; e quando a mitologia clássica, caracterís­tica do género, era uma expressão irrecuperável, salvo para um certo natu­ralismo de insinuação estética — constituía um nobilitante desafio ao enge­nho dos poetas.
Os poemas épicos do Renascimento ou são romances cavaleirescos ver­sificados, como o Orlando Enamorado de Boiardo e o Orlando Furioso de Ariosto, ou procuram reflorir, com grande margem de alegorias já sem a força dantesca, a grandiosidade da história teológica cristã, como a Jerusa­lém Libertada de Torquato Tasso. Na verdade, desde o século XII formas narrativas modernas (o conto, a novela e sobretudo o romance) sobrepunham--se ao género épico. A narração oral antiga (para audiência de praças ou festins) de um mundo animado e maravilhoso, onde cada herói vai talhando a sua própria lei, por entre as intrigas de uma outra humanidade superior, a dos deuses, dá lugar, em geral, à leitura (muda, ou em pequenos grupos) de enredos em cenários bem mais limitados, num mundo de coisas inertes, desprovido de qualquer maravilhoso capaz de enquadrar as aspirações de um certo individualismo (que afinal se reajusta transferindo-se de condições gentílicas para condições cada vez mais burguesas). Criações eruditas e arti­ficiosas, fora de tempo, os poemas renascentistas em que se procurou res­suscitar a epopeia clássica dentro dos cânones homéricos e virgilianos malograram-se, como a Franciade de Ronsard, cujo canto I e único saiu no mesmo ano que Os Lusíadas.

Foi precisamente o desiderato da ressurreição da epopeia clássica segundo o padrão homérico que Camões procurou satisfazer, levando a cabo um objec­tivo característico dos escritores humanistas. O ambiente marítimo do assunto central aponta para a filiação do poema sobretudo na linhagem da Odisseia, da primeira metade da Eneida e dos poemas sobre os Argonautas escritos pelo grego Apolônio de Rodes e pelo romano Valério Flaco. E de facto alguns investigadores salientam algum débito de Camões ao poema Argonáutica (Fei­tos dos Argonautas) deste último.
À ideia da epopeia pátria andava associada certa ideologia nascida da expansão, e cujas raízes encontrámos já em Zurara. Segundo essa ideolo­gia, os Portugueses cumpriam uma missão providencial, dilatando tanto o Império como a Fé: eram os Cruzados por excelência. As lutas internas entre Cristãos (Católicos e Reformados, Casa de França e Casa de Áustria), coin­cidindo com o avanço turco nos Balcãs, que chegara até Viena (1529) dois anos depois do saque de Roma por tropas luteranas do católico Carlos V, vinham tornar mais actual esta missão divina atribuída ao Reino Lusitano, exemplo que envergonharia o resto da Cristandade.

Intenções inerentes à forma d'Os Lusíadas
O tema escolhido por Camões para o seu poema foi toda a história de Portugal, como se vê pelo próprio título: Os Lusíadas. Esta palavra (neolo­gismo inventado por André de Resende) designa os Portugueses, que a eru­dição humanística assim nobilitava como descendentes de Luso, filho ou com­panheiro de Baco. O próprio autor explicita o seu propósito, ao afirmar que canta «o peito ilustre lusitano».
Para acção nodal, escolheu Camões a viagem de Vasco da Gama, uma rota marítima como as de Ulisses e Eneias. Havia dela relatos pormenoriza­dos — o do roteiro de Álvaro Velho, o de Castanheda na História do Des­cobrimento e Conquista da índia, o de João de Barros nas Décadas, além das versões orais que certamente corriam. Era a propósito da viagem do Gama que Camões pretendia evocar toda a história de Portugal, sendo o próprio Gama e um dos seus companheiros aproveitados (à imitação dos poemas clás­sicos) para narradores principais da história.
Mas a viagem do Gama não bastava a Camões para estruturar uma epo­peia clássica. Uma obra de arte narrativa deste tipo exige uma unidade de acção, isto é, a convergência dos acontecimentos para uma situação crucial, e seu desenlace; por outras palavras: um enredo. Na viagem do Gama mal descobriu Camões um enredo, mas sobretudo uma sequência cronológica de acontecimentos. Mais ainda: num poema narrativo não podem dispensar--se caracteres palpitantes e paixões, que movem a acção; e entre os protago­nistas da viagem também Camões não viu caracteres ou paradigmas flagrantes, como são os dos poemas homéricos, apesar da sua proporção sobre-humana. Os heróis de Camões raramente parecem de carne; faltam-lhes carácter e paixões. São, em geral, estátuas processionais, solenes e impassíveis. Na resolução desta dificuldade de dar unidade dinâmica e caracteres ao seu poema, o Poeta encontrou a seu favor certas praxes greco-romanas do género, que lhe forneceram protótipos de uma intriga entre deuses apaixonados. O dinamismo aparente de Os Lusíadas não reside tanto nas dificuldades e peripécias da viagem do Gama como na rivalidade que opõe Vénus, protec­tora dos Portugueses, a Baco, inimigo deles. Desta intriga resultam os obs­táculos que a esquadra encontra na costa oriental africana, a tempestade no Índico (aliás fictícia, desconhecida dos cronistas, ou antes, deslocada do prin­cípio para o fim da viagem) e as intrigas que indispõem contra os Portugue­ses o Samorim. Baco é quem, disfarçado, prepara, onde pode, mau ambiente aos Lusos, quem em sonhos lança a desconfiança contra os recém-vindos, quem leva os deuses marítimos a desencadear a tempestade. E Vénus, por outro lado, quem intercede por eles junto de Júpiter, quem se serve das nin­fas para relaxar o esforço dos deuses marítimos que agitam as ondas, etc. Os deuses desejam, palpitam, lutam, têm nervos, em contraste com os homens históricos, que (à excepção de Veloso e dos amorosos) parecem de bronze ou de mármore. Tudo se passa como se os deuses desencadeassem ainda todas as forças, físicas ou psíquicas, que movimentam o mundo sublunar — ou fossem eles essas mesmas forças ignotas, mas, ao mesmo tempo, e com certa ironia, neles se traduzissem os mais secretos móbeis humanos.
É certo que, por sob a sua história imaginária de inspiração clássica, o poeta procura ressalvar a possibilidade de uma interpretação positiva: os contactos de Baco e Mercúrio com os homens passam-se em sonho ou em encarnações humanas. Os próprios deuses poderiam ser forças angélicas, demoníacas ou astrológicas, muito aceites no tempo e pelo próprio Camões, numa palavra, «causas segundas», intermediárias entre a causa primordial e os acontecimentos visíveis. Mas o facto é que todo o peso da sugestão poética vai cair no maravilhoso. Com o desfecho do poema, a ficção mitológica dissolve-se. Na Ilha dos Amores as deusas marinhas concedem aos nautas, então de regresso, todas as volúpias, e com elas a imortalidade; o Gama subs­titui Neptuno no amor de Tétis, senhora das águas. E neste ponto a mesma Tétis, declarando que os deuses servem só para fazer poemas, esclarece que tal mitologia é meramente alegórica. Sem ela, contudo, o poema perderia muito da sua palpitação e encanto.
Formalmente, a mitologia desempenha portanto uma função central n'Os Lusíadas: a de lhe dar uma unidade de acção e um enredo dinâmico. Mas Camões procurou tirar dela um partido concepcional e estético mais origi­nal, como já veremos.
O que anima esteticamente Os Lusíadas não são, pois, as qualidades pro­priamente épicas, a identificação afectiva do leitor com heróis. São, em pri­meira evidência, as qualidades textuais com que recria uma visão luminosa da vida: o verso oratório em que se vazam os discursos do Velho do Restelo, de Nun’Álvares, do Gama, da própria Inês de Castro; as fórmulas can­tantes e densas que se fixaram na tradição nacional letrada; a evocação majes­tosa dos esplendores do Olimpo, a da beleza feminina (a «bela forma humana», que as redondilhas Sobre os rios acabarão por esconjurar); a nitidez e preci­são da frase, por vezes enredada com transposições e liberdades sintácticas modeladas sobre o latim e com a sobrecarga de alusões mitológicas; a pro­digiosa arte do ritmo, que já tivemos ocasião de apreciar na obra lírica, e que aqui se adapta, ora à movimentação, ao pandemônio das batalhas (clas­sicamente sugerido por formas onomatopeicas), ora à lentidão tediosa das calmarias, ora ao paraíso luxurioso da ilha de Vénus, à majestade olímpica, ao pitoresco marítimo ou etnográfico, às situações mais picantes.»

HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, António José Saraiva e Óscar Lopes, 16ª edição, Porto Editora


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PORTUGAL e CAMÕES

HISTÓRIA
LUÍS DE CAMÕES
1415 – Conquista de Ceuta

1486 – Bartolomeu Dias dobra o Cabo das Tormentas / Boa Esperança

1492 – Cristóvão Colombo chega à América

1494 – Tratado de Tordesilhas

1497/98 – Vasco da Gama chega à India por mar

1500 – descoberta oficial do Brasil por Pedro A. Cabral

1507 – 1515 : Afonso de Albuquerque estabelece as bases do Império português no Oriente
1524(?) nasce Luís V. de Camões
1530-35: início da colonização do Brasil

1540 – Inquisição; primeiros autos de fé.
Terá estudado em Coimbra…
1537 - 1558 –  Fernão Mendes Pinto no Oriente, base do seu relato "PEREGRINAÇÃO"
1549/51: combate em Ceuta e perde o olho direito
1568-78: reinado de D. Sebastião
1578: Batalha de Alcácer-Quibir, morte de D. Sebastião

1578-80: Reinado do Cardeal D. Henrique
1552 – Briga e prisão
1553 – vai para a Índia; aventuras, naufrágio na foz do Mecon(Cambodja)
1569 - está em Moçambique e embarca para Lisboa com dinheiro de amigos, onde chega em 1570


1572 – primeira edição de OS LUSÍADAS

1580 – Filipe II de Espanha torna-se rei de Portugal
1580 (10 Junho) – morre e é sepultado na Igreja do Convento de Sant’Ana

1880 – Restos mortais (hipotéticos...) trasladados para o Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa









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TEXTOS DE APOIO À SESSÃO DE 7 DE FEVEREIRO



CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE FORAM ESCRITOS E PUBLICADOS OS LUSÍADAS.

Existe um retrato da época que nos mostra Camões sentado a uma mesa, diante do manuscrito d'Os Lusíadas. A cena passa-se em Goa, dentro da prisão.  Pelas grades vê-se, de cima, o mar e uma nau. Nas paredes há estantes com grandes volumes em capas de pergaminho. Em cima do catre, ao fundo, rolos de mapas. O Poeta é um homem desempenado, na força da vida, de cabelo e barba aloirados; olha em frente com o único olho, o esquerdo, bem aberto; um braço apoiado na mesa, com a mão segurando ostensivamente um miserável prato de comida; o outro braço levantado para mostrar na palma da mão uma mancha preta que não foi possível identificar. Veste um gibão escuro e amarrotado, com rasgões. A mesa, como o resto do mobiliário, é vermelha. Em cima, bem arrumadas, estão as folhas do manuscrito e um tinteiro com duas penas de pato. No chão, de lajes claras, o jarro da água e os grilhões abertos. Em primeiro plano, debaixo dos pés de Camões e já fora do cárcere, dois vultos curvados, que parecem espreitar para dentro. Alguém os cobriu com uma mancha de tinta, para os tornar irreconhecíveis: eram, talvez, os autores da desgraça do Poeta. A pintura, que tem a data de 1556, pertenceu ao próprio Camões. O pintor era um amador; ignorava as regras da perspectiva. Um amigo de Camões, quem sabe se ele próprio: a posição do rosto sugere um auto-retrato. De qualquer modo é uma representação simbólica e muito teatral, em que o Poeta se mostra como gostava que o vissem: pobre, perseguido, mas de cabeça alta, superior à desgraça e aos perseguidores, em atitude de desafio. Os livros assinalam a sua condição aristocrática de intelectual.

Este quadro podia servir de ilustração às estrofes do Canto VII em que ele se queixa das adversidades que acompanharam a composição d'Os Lu­síadas e dos fidalgos ilustres que em vez de o venerarem e recompensarem o perseguiam:

E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram
Com que em tão duro estado me deitaram! (VII, 81)
O mais antigo biógrafo de Camões, Manuel Severim de Faria, diz que ele foi mandado prender em Goa em 1556 por um governador da índia, sendo em seguida desterrado para a China. Camões refere-se n'Os Lusíadas ao "injusto mando" de que resultou o naufrágio na foz do Mékong, em que conseguiu salvar-se a nado com o manuscrito do poema (X, 128).
Nessa época o rei D. Sebastião era um menino para quem o povo olhava com uma esperança ansiosa, visto que não havia outro herdeiro legítimo da Coroa portuguesa. Todo o mundo se preocupava com a saúde e educação desta garantia frágil da independência nacional. É como menino ainda, e como dom de Deus, que Camões o apresenta na dedicatória. Mas a redac­ção d'Os Lusíadas prolongou-se durante mais de uma dúzia de anos. No final do poema o Autor refere-se a D. Sebastião como rei em exercício («no régio sólio posto», X, 146), e já no canto VII, est. 85 se diz que ele é "novo no ofício" e que disso abusam os seus conselheiros. D. Sebastião começara a governar, aos 14 anos, em 1568. E há ainda no poema referências muito cla­ras às intrigas políticas na corte portuguesa a partir de 1569, especialmente ao poder exercido pelos Jesuítas, nessa época muito criticados pela ambição do mando e do dinheiro:

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
simulando justiça e integridade. (IX, 28)


OS LUSÍADAS, ed. de Hernâni Cidade, 
Livraria Figueirinhas, 3ª edição, 2006

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RENASCIMENTO, HUMANISMO, CLASSICISMO


O século XVI é marcado, a nível europeu, pela desintegração do sistema feudal, acompanhada por um grande surto de desenvolvimento económico: crescimento da produção artesa­nal e agrícola, desenvolvimento do comércio, primeiras manu­facturas. Este desenvolvimento económico é favorecido tam­bém pelos Descobrimentos portugueses e espanhóis, com a consequente ocupação e saque de vastíssimos territórios na África, Ásia e Américas, zonas produtoras de matérias-primas muito procuradas.
Tal desenvolvimento económico vai criar novas necessidades, tendentes ao reforço do modo de vida e da ideologia burguesa. Eram necessários novos métodos de investigação científica, com base na observação e na experimentação o que impli­cava a ruptura com o pensamento escolástico, assente na auto­ridade dos mestres e na especulação teórica.
A invenção da imprensa, em meados do século XV, por Guttenberg, vem permitir a difusão mais ampla das ideias e das notícias e o acesso de um número cada vez maior de pessoas ao saber e à cultura. 0 contacto, possível agora graças aos Descobrimentos, com novas terras, usos, faunas, floras, vem ajudar ao desfazer de concepções medievais. Os avanços da técnica construção naval, invenção de instrumentos náuti­cos, extracção mineira começam a mostrar as possibilidades maiores de domínio da natureza.
Desenvolve-se igualmente, no domínio religioso, uma contes­tação cada vez maior da Igreja de Roma. Erasmo e depois Lutero vão pôr em causa a prática de Roma e vão preconizar a consulta e crítica directa dos textos sagrados. O luteranismo surge, assim, como instrumento de libertação das consciências.
Galileu, esse, condenado pela Igreja pela heresia de ter ousado afirmar que a Terra anda à volta do Sol (na sequência de Copérnico) lança as bases da ciência experimental.
Começam a surgir novos ideários políticos: Thomas More sugere na sua «Utopia» uma sociedade sem classes, em que todos produziriam e a riqueza seria distribuída equitativamente, ninguém teria nada e todos teriam o necessário, visto a proprie­dade da terra ser colectiva.
Maquiavel, em «O Príncipe»,defende a existência de um estado nacional centralizado e secular; para tal, deveriam destruir-se os senhores feudais e o poder dos clérigos e os privilégios das classes favorecidas.
Esterenascimento» do espírito crítico é acompanhado por um cada vez maior interesse pela cultura greco-latina, cujos «produtos» se vinham conhecendo, graças à pesquisa feita pelos «humanistas».
Aos poucos, a cultura humanista vai-se consubstanciando num conjunto de valores e ideias que dá pelo nome de huma­nismo:
Sendo o homem considerado o pólo de referência, «medida de todas as coisas» é possível:
    o combate à Escolástica como filosofia castradora do desen­volvimento do espírito crítico;
    o preconizar de uma educação integral (corpo, mente, espí­rito) do homem, que desenvolva o raciocínio e não a memória (Rabelais, Montaigne, Coménio);
    o defender do regresso à pureza evangélica e da livre crítica dos textos sagrados (Erasmo, Lutero);
    o preconizar a escolha dos dirigentes segundo o seu mérito e não segundo o seu sangue; o condenar a guerra e a intole­rância religiosa;
    em matéria estética, o defender a latinização das diversas literaturas nacionais, fazendo renascer os modelos artísticos e literários da Antiguidade, (Classicismo).
As teorias artísticas do Renascimento (classicismo) são as seguintes:
    carácter mimético da arte: a verdadeira arte tem por base a imitação da natureza e dos modelos greco-latinos;
    equilíbrio: a verdadeira arte é equilibrada um conteúdo rico numa forma perfeita;
    o herói deve ser capaz de auto-domínio, equilíbrio: «Je suis maître de moi comme de l'univers» — «sou senhor de mim como do universo» (Corneille);
    a arte tem carácter universal, sendo os seus princípios váli­dos para todos os tempos e todos os povos.
Em suma: o movimento cultural do Renascimento representa uma viragem decisiva em relação às concepções medievais; substitui uma concepção antropocêntrica (o Homem, centro do
universo) à concepção teocêntrica (Deus, centro do universo) medieval. Para o homem devem convergir:
8 religião: entendida como ligação directa e pessoal do crente com Deus, sem intermédio de qualquer Igreja;
a organização da vida social: ao ascetismo medieval substitui-se a vida mundana, as festas, os luxos palacianos;
as concepções pedagógicas;
as concepções politicas: secularização do poder, justiça social, recusa da guerra...
as concepções estéticas (classicismo).
Neste domínio da arte e das letras, vai-se assistir à constru­ção de palácios, praças, fontes, parques, para bem-estar do homem ( a Idade Média construirá sobretudo catedrais, para Deus, e fortalezas); o nu e o corpo do homem ressurgem na pintura e na escultura, substituindo as figuras dos santos — como sucede, por exemplo, com o grande Miguel Ângelo; com o gosto pelo corpo redescoberto, que a Idade Média condenara como sede do pecado e do mal, surge o erotismo; a epopeia do homem faz-se, na literatura, depois de um longo período em que os grandes temas eram de carácter religioso e alegórico; ao canto gregoriano substitui-se a música profana, de palácio.
0 Renascimento marca, efectivamente, o renascer da con­fiança no Homem como sujeito da História e do progresso. O «Paraíso Perdido» será recuperado pelos homens, mas neste mundo, na Terra, e não numa vaga «Jerusalém Celeste».


OS LUSÍADAS, Organ., introd. e notas
de Amélia Pinto Pais, Areal editores, Maia, 1994



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LUÍS DE CAMÕES E OS LUSÍADAS













Edição organizada por António José Saraiva; Livraria Figueirinhas, 3ª edição, Lisboa, 2006. |  Introdução de António J. Saraiva, de 44 páginas, com um breve estudo sobre esta obra. No final, um extenso VOCABULÁRIO com "palavras e construções desusadas, nomes históricos, geográficos e mitológicos". No corpo do livro, o texto do poema é acompanhado de pequenos textos explicativos que acompanham cada uma das estrofes.



TEXTO DE APRESENTAÇÃO

(Clicar no texto para ver em separado)

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                                                      Texto inicial de Frederico Lourenço:



«VER HOMERO, LER O MUNDO


Amanhã, dia 13 de Maio de 2004, estreia nos cinemas de Portu­gal uma super-produção americana que terá custado à indústria de Hollywood a quantia aterradora de 200 milhões de dólares. O filme a que me refiro chama-se Tróia, foi realizado por Wolfgang Petersen e baseia-se, pelo que me foi dado perceber da publicidade antecipada, na Ilíada de Homero, embora as fotografias já divulgadas na internet há vários meses nos mostrem que o enredo do filme ultrapassa a barreira do último verso da Ilíada para entrar pela Odisseia dentro, pois a ima­gem do célebre cavalo de madeira, por meio do qual Tróia foi tomada e saqueada ao fim de dez anos, pertence à Odisseia, e não à Ilíada.

Para todos os que, como eu, lutam diariamente para convencer os cépticos da importância actual da Literatura Grega, o facto de a indús­tria cultural mais mercenária do nosso planeta ter escolhido investir tan­tos milhões na readaptação e divulgação da epopeia homérica é motivo de alegria. Afinal, parece que nos estão a dar razão: a poesia homérica é mesmo empolgante, é actual, tem todas as capacidades para comover, entusiasmar, meter medo... não fica atrás da Guerra das Estrelas ou do Senhor dos Anéis.
Eu ainda não vi o filme Tróia, portanto não me posso pronunciar so­bre a sua qualidade; posso dizer, porém, que tenho poucas expectativas e que, por tudo o que já li, parto do princípio de que a adaptação será confrangedora e profundamente anti-homérica. Ao que parece, à boa maneira hollywoodesca, a tónica do filme residirá na questão da violên­cia, realidade aliás inseparável do âmago da poesia homérica, pois não só a Ilíada nos relata com terríveis pormenores anatómicos as mortes de incontáveis heróis, como a própria Odisseia, muitas vezes apelidada "poema de paz", acaba com a chacina de cento e oito rapazes novos às mãos de um homem mais velho (coadjuvado pelo filho e por dois servos). A ideia de que é mais excitante ouvirmos a descrição porme­norizada de pessoas a matarem-se umas às outras do que a amarem-se umas às outras é um dado narrativo instituído por Homero, que por um lado relata cenas de amor com todo o pudicícia e sem a mínima suspeita de voyeurismo (tendo o cuidado de terminar a descrição mesmo antes de as coisas começarem a aquecer), mas por outro lado põe a câmara (para falar em termos cinematográficos) mesmo em cima do crânio esti­lhaçado pela lança inimiga, fazendo-nos ver os miolos da pessoa morta derramados na terra, ou o braço decepado, os intestinos a sair do golpe infligido na barriga, os testículos rasgados. Para milhares e milhares de espectadores em todo o mundo, que a partir de amanhã irão ver o filme Tróia sem nunca terem lido Homero, o horror da violência ficará como primacial elemento caracterizador da epopeia grega; e essas pessoas verão justamente na violência aquilo que faz da epopeia homérica um artefacto de cultura actual.
Mas convertendo esta ideia, podemos dizer que o cinema épico de massas é um artefacto de cultura com contornos arcaicos, porque a poesia épica não nasce na Grécia como modelo de narração destinado às elites, mas como poesia popular, capaz de chegar a todos os estratos sociais, desde os mais humildes à realeza. Na Grécia antiga, a coisa mais parecida com o prazer moderno de irmos ao cinema era ouvir a recita­ção dos Poemas Homéricos. Assim se compreende que todos os grandes eventos desportivos na Grécia (Jogos Olímpicos, etc.) integrassem a reci­tação dos Poemas Homéricos; assim se compreende que, na obra de um autor do séc. IV como Platão, perpasse permanentemente a ideia de que Homero é o expoente máximo da poesia, da narração, da própria magia da palavra. E é por isso que Homero será visto como perigoso e que será excluído, na República, da cidade ideal.

Mas Platão não é o primeiro filósofo a reagir de forma desconfiada contra o sortilégio exercido pela poesia homérica: antes dele, Heraclito afirmara que Homero devia ser açoitado e expulso dos festivais; e Xenófanes dissera que a poesia de Homero está repleta de mentiras, por atribuir aos deuses todo o género de estupros, vilezas, vinganças e mal­dades. Ao lermos Os Lusíadas do nosso sublime Camões, encontramos o mesmo panteão, o mesmo modelo, a mesma maneira de olhar para o mundo (não obstante a base espiritual do Cristianismo). Mas a grande diferença é que com Os Lusíadas já estamos a lidar com um artefacto destinado a elites: é um poema cuja concepção e linguagem tornam a sua fruição inacessível às massas, ao passo que a Ilíada e a Odisseia parti­lham com a Bíblia esse estatuto mágico de serem obras-primas absolutas culminantes da cultura universal, mas ao mesmo tempo perfeitamente compreensíveis até para o analfabeto que ouve a respectiva leitura em voz alta. Em Roma nunca houve qualquer texto literário com esta carac­terística, à excepção talvez da tradução da Odisseia de Lívio Andronico. E na própria Grécia, apesar de a tragédia e a comédia serem espectáculos a que assistiam milhares de pessoas, a linguagem em que foram compostas tornava-as à partida inteligíveis, em toda a sua plenitude, para um número apenas muito restrito de cidadãos. O que no fundo funcionou para trazer a tragédia mais perto dos espectadores foi o facto de os tragediógrafos recorrerem sistematicamente ao manancial de temas épicos para comporem os seus entrechos. E não será por acaso que as duas tragédias mais lidas e mais estudadas de Sófocles e Eurípides até à queda Constantinopla no séc. XV da nossa era, respectivamente as tragédias Ajax e Hécuba, tivessem como tema episódios da guerra de Tróia.
Mas é evidente que será mais no seio do próprio género épico do que na tragédia que vamos encontrar indícios de que a poesia homérica moldou a forma de ver o mundo ou, melhor dizendo, a forma de contar, narrar o mundo. A Eneida de Virgílio, poema em doze cantos, é disso testemunha eloquente, na medida em que a sua estrutura espelha tanto na Ilíada como a Odisseia, a ponto de se poder dizer que os primeiros cantos são um decalque da Odisseia, sendo os cantos sete a doze um decalque da Ilíada. E talvez por influência da Eneida, verificamos que n’ Os Lusíadas temos também um conceito de como olhar para a história, de como contá-la, que se estrutura mais uma vez segundo o modelo da Odisseia.»


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Os estudos clássicos em Portugal têm uma especialista de primeira plano: Maria Helena da Rocha Pereira. 

Este seu livro é um marco importante.

Aqui ficam alguns excertos, dedicados à ODISSEIA:





«A Odisseia é, fundamentalmente, um poema de (…) regresso, um dos muitos que se compuseram, possivelmente o mais extenso, e segu­ramente o melhor. Aquela palavra aparece logo na proposição e invocação com que abre a epopeia.
Estamos bastante afastados do tema da Ilíada, embora as figuras principais continuem ligadas ao ciclo troiano. O alvo agora é a paz, e pode dizer-se que a nostalgia da paz é a sua dominante.
A Ilíada é a glorificação do ideal heróico. A Odis­seia abre com a palavra que significa «homem», e só vinte versos adiante o identifica; homem que muito sofreu e que muito aprendeu sobre os mais variados povos. É o poema das aventuras, das múltiplas his­tórias que excitam a atenção do ouvinte, e do espí­rito aberto a todas as curiosidades de «Ulisses dos mil artifícios», que vence todas as dificuldades graças ao seu engenho. Nele podem ter lugar os grandes gestos de coragem e os rasgos de heroísmo, mas a narração oscila de preferência entre o romanesco, ou até o fantástico e também o que é simplesmente natural.
Embora a acção seja mais concentrada, temos dois fios condutores em vez de um: as aventuras de Telémaco e as de Ulisses, que só se encontram e se reco­nhecem no canto XVI. Também há duas cóleras divinas a perseguir Ulisses: a de Poséidon e a de Hélios, que não se cruzam nem interferem uma na outra. A propo­sição anuncia a segunda, mas ignora a primeira, que aliás surgirá antes dela na sequência do poema Mas vejamos qual a ordenação dos factos:
Canto I — Os deuses reunidos no Olimpo, na ausência de Poséidon, decidem que Ulisses regresse a Itaca. O jovem filho de Ulisses, Telémaco, aconse­lhado por Átena, que lhe fala disfarçada de Mentes, resolve partir em busca de novas do pai.
Canto II — Para isso, convoca a assembleia de Ítaca, a fim de solicitar dela um navio que lhe permita ir a Pilos e a Esparta inquirir de seu pai. Disfarçada de Mentor, Atena promete-lhe assistência.
Canto III Recepção de Telémaco e Atena-Mentor em Pilos. Nestor conta o fim de Agamémnon e aconselha Telémaco a visitar Menelau, para o que lhe dará por companhia seu filho Pisístrato.
Canto IV — Na Lacedemónia, os dois jovens são recebidos por Menelau, e depois de se identificarem, recorda-se o fim de Tróia e as circunstâncias do regresso do rei de Esparta. Entretanto, em Ítaca, os pretendentes preparam uma emboscada a Telé­maco.
Canto V — Os deuses reunidos no Olimpo determinam que Ulisses regresse a Ítaca, pelo que mandam Hermes à ilha de Ogígia dar ordem à ninfa Calipso de deixar partir o herói. Este constrói uma jangada e faz-se ao mar. Mas Poséidon, que o vê, desencadeia uma tempestade que o faz naufragar. Salva-se a nado, graças a um véu da deusa marinha Leucoteia.
Canto VI Nausícaa, filha do rei dos l7eaces, devido a um sonho inspirado por Atena, vai lavar roupa ao rio com as aias. Aí encontra Ulisses náu­frago, a quem manda vestir e alimentar, e ensina-lhe como há-de proceder para conseguir regressar ao seu país.
Canto VII Ulisses apresenta-se como suplicante à rainha Arete. O rei Alcínoo concede-lhe a hospi­talidade e promete reconduzi-lo a Ítaca.
Canto VIII Prepara-se o navio e dá-se um grande banquete em honra de Ulisses. Este, ao ouvir o aedo cantar o seu glorioso passado, comove-se, o que faz suspeitar Alcínoo da sua identidade. Para o distrair, o rei leva Ulisses a assistir aos jogos dos Feaces. O aedo canta os amores de Ares e Afro­dite, e mais tarde, a pedido de Ulisses, o estratagema do cavalo de pau. O rei de Ítaca ouve, emocionado.
Canto IX Ulisses revela-se e, a pedido dos seus hospedeiros, começa a contar as suas aventuras: com os Cicones, os Lotófagos, o Ciclope.
Canto XContinua a narrativa: a ilha de Éolo, os Lestrígones, a ilha de Circe.
Canto XI Ulisses vai aos infernos consultar o tebano Tirésias sobre o seu regresso. Aí fala também com a mãe, com as heroínas e com alguns heróis do cerco de Troia, e avista Minos, Orion, Hércules e os supliciados divinos.
Canto XII Narrativa dos episódios das Sereias, de Cila e Caríbdis, das vacas do Sol.
Canto XIII Os marinheiros feaces deixam Ulis­ses adormecido na terra de Ítaca. O navio que o trouxe petrifica-se, por castigo de Poséidon. Ulisses escuta os conselhos de Atena sobre a vingança.
Canto XIV Ulisses na cabana de Eumeu, guardador dos seus porcos, que o não reconhece, é infor­mado do estado de coisas em Ítaca.
Canto XV Telémaco regressa e consegue evitar, graças a Atena, a emboscada dos pretendentes.
Canto XVI Na cabana de Eumeu, que os acolhe, e enquanto este vai prevenir Penélope do regresso do filho, Ulisses e Telémaco reconhecem-se e prepa­ram um plano.
Canto XVII Telémaco regressa ao palácio. Ulisses  acompanhado por Eumeu, apenas é reconhecido pelo seu velho cão, e é mal recebido por todos.
Canto XVIII Ulisses combate com o vagabundo Iro e vence-o. Penélope sugere aos pretendentes que mostrem a sua dedicação ofertando-lhe presentes, e não dissipando os seus haveres.
Canto XIX Ulisses, sempre desconhecido, conta a Penélope uma história que garante que o senhor da casa está prestes a aparecer. Euricleia, a velha ama de Ulisses, ao lavar-lhe os pés, reconhece-o por uma cicatriz. Penélope, sempre na ignorância dos factos, anuncia o seu plano para escolher um dos pretendentes.
Canto XX Durante um agitado festim dos pre­tendentes, Ulisses é maltratado e insultado.
Canto XXI Penélope traz o arco de Ulisses, pro­metendo a sua mão ao que for capaz de desfechar com ele uma seta que atravesse os buracos de doze machados em fila. Todos falham. Ulisses consegue experimentar a sua habilidade, graças à intervenção de Penélope, e acerta à primeira vez.
Canto XXII Ulisses revela-se e, com o auxílio de Telémaco, do porqueiro e do boieiro, os dois guardadores de gado que lhe tinham ficado fiéis, mas­sacra todos os pretendentes e maus servidores. Apenas são poupados o aedo e o arauto.
Canto XXXIII — Penélope reconhece finalmente Ulisses, depois de este ter provado conhecer o segredo da construção do leito conjugal.
Canto XXIV — As almas dos pretendentes são levadas por Hermes para o Hades, onde dialogam Agamémnon e Aquiles. Ulisses visita seu pai Laertes. Juntamente com ele e com Telémaco, lutam contra as famílias dos pretendentes. Atena estabelece a paz entre os dois partidos.
Este resumo, muito esquemático, aliás, podia reduzir-se ainda ao seguinte:
Aventuras de Telémaco (I - IV)
Ulisses na ilha de Calipso (V)
No País dos Feaces (VI - VIII)
Errores de Ulisses (IX - XII)
Repatriação de Ulisses e revelação a Telémaco (XIII – XVI)
Vingança de Ulisses (XVII - XXIV).

(…)

in: Maria Helena da Rocha Pereira, ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CULTURA CLÁSSICA, vol. I – Cultura grega,
3ª ed, Fundação Calouste Gulbenkian, Coimbra, 1970

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LER OS CLÁSSICOS?
SIM! PORQUE MERECEMOS O MELHOR!
 


-   Essa história de "ler os livros clássicos" já me aborrece. Quero lá saber... Livros escritos há séculos, alguma vez podem ter interesse para quem vive no século XXI?!!...
-   Já percebi... para ti o que interes­sa é o imediato, o aqui e agora. Assim não vais longe...
-   Pois claro que não vou longe, eu nem quero sair daqui... A mim bastam-me os livros escritos por gente do meu tempo! Não me interessa nada essa treta do D. Quixote, um homenzinho maluco que viveu há 400 anos e atacava moinhos de vento...
-  Cada um lê o que quer, tudo bem. Mas acho que tu mereces mais...
-    Não percebo...
-    Sem querer armar-me em teu mestre, só te digo: os chamados livros clássicos são reconhecidos como tal porque são livros de todos os tempos. Falam do Homem intemporal e têm o condão de serem entendidos por lei­tores de todas as épocas.
-    Mas nós estamos numa época especial. Temos computadores, somos um mundo global, agora é tudo dife­rente de antigamente.
-    Será? As circunstâncias mudam com rapidez mas o ser humano per­manece mais tempo... Embora também evolua, claro. O que os grandes livros clássicos nos mostram é a riqueza e a variedade do ser humano ao longo do tempo. Tu hoje abres a Bíblia - um grande texto clássico, para além da Fé de cada um - numa página qualquer e parece que te está a falar dos proble­mas que tens hoje. Abres a «Odisseia» e tens a mesma sensação. O mesmo com uma peça de Shakespeare, ou o magnífico «Moby Dick.».
-    Estás a meter tudo no mesmo saco...
-    A grande qualidade dos livros clássicos é que eles podem ser lidos de muitas maneiras. Sabias que «Os Lusíadas» já foram estudados como livro de Ciências Naturais? Por ele sa­bemos o que o homem do século XVI conhecia sobre esse assunto...
-   E o D. Quixote serve para estudar o quê? Como se não deve atacar moi­nhos de vento?
-   Isso é um preconceito. As pessoas só pensam nos moinhos de vento quando falam do D. Quixote. A verdade é que este é um dos mais divertidos e variados livros de sempre. A história dos moinhos é um grão de areia no meio daquele mar de histórias, diálogos, situações. E há a figura do Sancho Pança, uma espécie de Zé-povinho, só que muito mais esperto.
-   Já sei: daqui a pouco estás a dizer que todos temos um bocadinho de Quixote e de Sancho dentro de nós... Bahh! Conversa intelectualóide...
-   Deixa-te de bocas patetas. Já re­paraste? O grande prejudicado és tu! Eu divirto-me à grande com um livro fabu­loso - um clássico, caramba! - e tu contentas-te com... sei lá o quê? Mereces mais... Acredita: mereces muito mais!

J. Moedas Duarte
LUGAR ONDE, jornal BADALADAS, 28/07/2006




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ODISSEIA E EÇA DE QUEIROZ

O que é que o conto de Eça, A PERFEIÇÃO, tem a ver com a ODISSEIA?

Resposta aqui:

http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/download/A_Perfeicao.pdf



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ODISSEIA

Homero
Tradução de Frederico Lourenço
Livros Cotovia, 2003


«Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963. Licenciou-se, em 1988, em Línguas e Literaturas Clássicas na Universidade de Lisboa, onde se viria a doutorar (1999) com uma tese sobre os cantos líricos de Eurípides.

É membro do corpo docente da Faculdade de Letras desde 1990. Além do estudo da poesia grega, tem-se dedicado à exegese da obra de Platão e Camões. Colaborou com a Cinemateca Portuguesa e publicou ensaios de crítica literária. Foi colaborador dos jornais Independente, Expresso, Público e, presentemente, do Diário de Notícias. Traduziu também duas tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon.

Publicou a trilogia de romances Pode um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas e À Beira do Mundo, obras pelas quais foi distinguido com o prémio PEN Clube 2002 e que estão agora reunidas num único volume, Pode um desejo imenso.

Em Maio de 2003, saiu a tradução em verso da Odisseia homérica, que ganhou o prestigiado Prémio D. Diniz da Casa de Mateus, assim como o Grande Prémio de Tradução - APT / PEN Clube 2003. 

À tradução da Odisseia seguiu-se a da Íliada, em 2005, e uma antologia de poesia grega, em 2006.»
(http://biblioteca-epalm.blogspot.pt/2010/01/destaque.html)

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O QUE DIZ O TRADUTOR DA ODISSEIA


 (In: Jornal de Letras, 6 Agosto 2003)

«Jornal de Letras -Porquê traduzir a Odisseia? 
Frederico Lourenço - Primeiro porque não havia, de facto, ne­nhuma tradução satisfatória da obra (a da editora Sá da Costa é vertida do grego, a da Europa-América do francês, ambas em prosa). Na nossa actividade universitária, estamos sempre a dizer aos alunos que as traduções da Odisseia não são boas e, a certa altura, já se tornava cansativo repetir a mesma coisa...
JL - Quais as maiores dificuldades que enfrentou neste tra­balho?
F.L. - O maior problema que senti foi no momento de entregar a tradução na editora porque o poema é muito extenso. Tem 24 cantos, 12 mil versos.
Depois de cinco anos de trabalho, era preciso harmonizar tudo para que não se notasse o tempo que levou a fazer.
JL - Começou a tradução pelo Canto VI e não pelo Canto I, por que razão?
F.L. - No fundo, comecei pelas partes de que gosto mais para experimentar e ver se funcionava. A partir daí, as coisas foram crescendo, tipo manta de retalhos, até que decidi que já tinha ma­terial suficiente para me dar ao trabalho de fazer tudo, mesmo as partes de que gostava menos. Embora, depois, também tenha pas­sado a gostar dessas, quando fiz a tradução completa.
JL - O que é que os textos clássicos têm para dar aos leito­res actuais?
F.L. - A Odisseia é uma história tão bem contada, tão interes­sante e empolgante, que qualquer pessoa gosta. Tem quase a téc­nica de um filme policial, que nos deixa em suspenso, muitas vezes. Como no final do canto IV, em que os pretendentes vão assassinar Telémaco. No último verso, eles ficam naquele sítio à espera dele, e depois passam-se milhares de versos a falar de outros assuntos, mas nós ficamos sempre com a corda na gar­ganta sem saber se o vão assassinar. Por outro lado, percebemos que é uma história em que só morrem os maus. O que é uma di­ferença substancial em relação à Ilíada, em que os bons são cas­tigados e os maus recompensados. A Odisseia está mais perto de um conto de fadas, há talvez uma visão mais infantil do mundo.
JL - O que não deixa de ser curioso, se pensarmos que a Ilía­da foi escrita anteriormente à Odisseia. F.L. - Sim, a Ilíada foi composta antes. Não se sabe exactamen­te quando, se 25 ou 50 anos antes. Há até quem fale em 100 anos de diferença. No entanto, há quase a certeza absoluta de que quem escreveu a Odisseia conhecia bem a Ilíada. Há muitos versos iguais nos dois poemas. Daí que, durante muito tempo, se pensasse que ambos tinham sido escritos na mesma altura, ou pela mesma pes­soa.
JL - De qualquer forma, não pode ter sido o autor da Ilíada quem imitou o da Odisseia"!
F.L. - Não. Isso é impossível. Mesmo linguisticamente, ao nível da semântica e da morfologia, a Ilíada é um poema muito mais antigo. Tem a ver com a história da língua. A Ilíada é mais como o português medieval, de Fernão Lopes, e a Odisseia como o de Camões. Num texto que escrevi sobre esta temática, faço uma comparação entre a Odisseia e a Sé de Braga. A Sé de Braga é uma catedral que começou por ser românica, mas tem acrescen­tos góticos, partes manuelinas. É, portanto, uma grande amálga­ma de estilos e de épocas, tal como a Odisseia. Aliás, um dos motivos de desentendimento entre filólogos, nesta matéria, tem a ver, precisamente, com o decidir se determinada parte é mais antiga ou mais recente. Na verdade, estamos a falar de um texto com 2800 anos que nunca poderemos ler com o espírito de uma pessoa dessa época. E depois, à medida que os séculos passam, as coisas vão-se parecendo mais umas com as outras. Se calhar, daqui a 3000 anos, entre o português de Fernão Lopes e o de Mi­guel Sousa Tavares não haverá grande diferença...»



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ALMEIDA GARRETT E AS VIAGENS NA MINHA TERRA


«Pelo seu conteúdo ideológico, pelos seus conflitos, por tudo o que de pessoal Garrett verteu nas suas reflexões e nas suas persona­gens, pelo modo tão íntimo como sentiu a paisa­gem, pelo amor das coisas da nossa terra, pelo estilo natural, vivo e pessoalíssimo que criou, as Viagens são uma obra do melhor que o Roman­tismo produziu entre nós. Revelam-nos um homem bom, culto, lúcido, elegante, sensível às coisas simples, como às futilidades do século, e dotado, além do mais, de um bom gosto, que muitos, no seu tempo, não souberam possuir.
Retomando uma expressão que empregá­mos no início do prefácio, podemos sem receio afirmar que este livro representa um marco capital na nossa literatura. Poucos exprimem melhor do que ele a psique e a estesia românti­cas. Livro "organizado" na sua aparente desor­dem, enfeixa numa visão trágica, apesar da bonomia constante, as digressões que o constituem: o espectáculo que se oferece - salvo o da pujança da Natureza, seja ela terra ou povo - é sempre o da decadência, visível no estuque assassino dos templos, na literatura "cava e funda", nos contos de réis que se apregoam, na baronia sem alma de Carlos; visível, enfim, na morte necessária de Joaninha, a dona dos olhos verdes e a amiga dos rouxinóis. Joaninha - um desses raios transientes de luz que são revér­bero do Criador acordam as memórias do Éden perdido, para logo acabarem esmagados pelas "barras de ferro" das constrições e deforma­ções sociais.
Por tudo isto, poucos livros nos anunciam também melhor do que as Viagens o ruir da sociedade e da literatura românticas. Não só, com efeito, aí se revela a desilusão do liberalismo tal como ele se manifestou entre nós, se critica a estruturação injusta da sociedade capi­talista, se denunciam os exageros e a retórica da literatura da época, como, em compensação, se abrem também novos rumos à literatura portuguesa. O interesse manifestado pelas coi­sas da nossa terra, que Garrett mostrava pos­suírem virtualidades capazes de suscitar a emo­ção estética, contribuía para encaminhar os escritores de então no sentido dos motivos na­cionais: uma novela como a da Menina dos Rouxinóis, além de um exemplo de sobriedade, era uma novela de assunto bem português, já não propriamente histórico, mas quase contem­porâneo, onde as personagens não eram con­vencionais ou declamatórias, mas profunda­mente humanas nas "situações" em que se debatiam. Facilitava-se deste modo o caminho à novela de tipo camiliano, que surgiria pouco depois. Uma profunda revolução se reflectia também no estilo. Vendo o modo como Garrett se soube comunicar através dele, adaptando-o aos cambiantes de pensamento, como enrique­ceu de novos valores semânticos velhas metáfo­ras da língua, a fina ironia e o traço justo de que usou na caracterização rápida através de uma adjectivação absolutamente nova, a extrema habilidade com que brincou quase com a língua, não podemos deixar de reconhecer quanto lhe deve, por exemplo, um escritor como Eça. Com base se tem vincado que a prosa lite­rária portuguesa moderna nasceu com Garrett.»
OFÉLIA MONTEIRO,
Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett
 Postado em 4 de Janeiro de 2013




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